Entrevista com a representante judaica Kelita Cohen
Atualizado: 23 de jul. de 2019
Confira a esclarecedora entrevista com Kelita Cohen a respeito de sua relação com o Judaísmo, bem como acerca da perspectiva judaica sobre questões contemporâneas.
Religião monoteísta mais antiga de nossa sociedade, o Judaísmo conta hoje com mais de 14 milhões de adeptos em todo o mundo. Os judeus seguem os ensinamentos dos Dez Mandamentos, da Torá e da Bíblia Hebraica e têm como símbolo principal a Estrela de Davi. Um dos mais fundamentais entendimentos judaicos consiste na definição de Deus: ser incorpóreo, indivisível e único.
Para melhor esclarecer a respeito do Judaísmo e contemporaneidade, conversamos com Kelita Cohen, psicóloga, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB), estudante de rabinato no Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR) e integrante da Comissão Religiosa da Associação Cultural Israelita de Brasília (ACIB).
De que forma a fé judaica entrou em sua vida e de que maneira tem transformado sua perspectiva de mundo?
O Judaísmo chegou a mim já na vida adulta. Da infância, a ideia de religiosidade que eu trazia comigo tinha como base o conhecimento das histórias bíblicas de uma forma lúdica, que não me davam respostas às questões existenciais que a realidade me demandava. O Judaísmo não me trouxe respostas a essas questões (ao contrário, provocou-me outras), mas deu-me liberdade para refletir sobre elas de uma forma crítica. Então, o que me fez abraçar o Judaísmo como lente interpretativa da realidade foi a possibilidade que essa visão de mundo me dava de questionar e de não ter a necessidade de ter uma verdade como resposta. A imersão não apenas no que concerne às questões religiosas, mas também ao envolvimento com a cultura judaica e, consequentemente, à formação de um vínculo de pertencimento com esse povo definido como judeu, foi fundamental para que eu me constituísse a judia que sou, por opção.
Nesta sociedade complexa e fluída em que vivemos, muitas questões estão surgindo, o que desafia as religiões. Poderíamos dizer que há uma necessidade de recontextualização dos textos sagrados? E como a fé judaica tem enfrentado os desafiantes questionamentos de nossa realidade plural?
A tradição judaica era, historicamente, transmitida de forma oral. A necessidade de escrevê-la já foi uma resposta aos eventos de um certo momento, que colocavam em risco a permanência do seu conteúdo, por razões diversas. O fato de sermos o povo do livro, ou o povo que escreve livros, demonstra o quão dinâmico e contextualizado é o pensamento judaico. A própria Torá, que é o nosso livro sagrado por excelência, eu não a vejo como um manual de conduta, mas um registro das experiências humanas de nossos antepassados, para que possamos refletir sobre elas e extrair dali os valores que devem orientar a nossa conduta diante dos desafios presentes.
Em relação à emancipação feminina, mais especificamente, como o Judaísmo tem enfrentado a questão?
A questão do machismo e a opressão em relação à mulher não é privilégio do Judaísmo, e tampouco a nossa tradição pode ser tida como referência em termos de equidade de gênero. Por esse motivo, considero fundamental uma releitura dos textos religiosos que consiga superar esse desafio global e que faça justiça às mulheres, restituindo-lhes a voz e o direito de existência em sentido lato. Essa é a maneira como o Judaísmo liberal, em suas diferentes vertentes, tem participado desse movimento de emancipação feminina da opressão patriarcal que nos tem invisibilizado e silenciado historicamente. As conquistas são muitas, mas é um processo lento.
De que modo poderíamos descrever o convívio entre a fé judaica e outros credos e tradições? Há espaço para maior aproximação?
O patriarca Abraham, que fundou as bases do monoteísmo, tinha como princípio o acolhimento ao estrangeiro, ao viajante, independente da sua religião. Moisés, quem estabeleceu a estrutura legal e social do povo judeu, recebeu de seu sogro Itró (Jetro), um sacerdote midianita, as instruções para ordenar o povo. Temos ao longo da história muitos exemplos de convivência harmoniosa entre as religiões, inclusive entre árabes e judeus. Durante a Idade Média, foi, sob a proteção do Império Otomano e Árabe, que floresceu a filosofia judaica. Enfim, são muitos exemplos, ao longo da história, que podemos tomar, para afirmar e reafirmar a tolerância, sempre que as condições sociopolíticas assim o permitiram. Acredito que, hoje, vivemos em um tempo no qual o terreno da coexistência se tem consolidado e, inclusive, se institucionalizado, permitindo relações cada vez mais próximas. Abraham Joshua Heschel marchou de braços dados com Martin Luther King na luta pelos direitos humanos, tendo em comum a ética e a espiritualidade, independentemente da forma de expressão religiosa de cada um. É sobre essa base que nós nos valemos hoje para aprofundar o relacionamento entre pessoas de diferentes religiões, criando empatia pelo outro que é diferente de nós.
Hoje, com o advento da Internet, as paredes das sinagogas e de nossas casas, que separavam o interno do externo, estão em erosão, principalmente quando se trata dos jovens. De que maneira o Judaísmo pretende manter a fé e a tradição, perante a juventude, em um mundo sem paredes?
Um judaísmo sem plasticidade estaria fadado ao desaparecimento. Por sorte, não é o que vemos acontecer. Cada vez mais, temos feito uso das novas tecnologias, para nos auxiliar na transmissão do conhecimento e para aproximar as pessoas, antes separadas geograficamente. Continuamos privilegiando o encontro e o contato direto entre pessoas, que é o nosso sentido comunitário, mas temos incorporado o mundo virtual nas nossas atividades de forma crescente.
Quanto à solidão, em que medida as práticas judaicas poderiam aliviar esse estado físico e anímico?
O Judaísmo é, desde sempre, muito comunitário. Tanto é assim que alguns chegam a dizer que o Judaísmo é mais cultura e identidade coletiva do que religião propriamente dita. Por essa razão, ele é, antes de mais nada, uma forma de enfrentar o isolamento social e a solidão.
O mundo que nos é revelado acumula desafios socioeconômicos de distintas ordens. Nessa realidade complexa, temos a grande oportunidade de atuarmos como instrumentos de Deus, auxiliando no acalento das dores e das necessidades alheias. Qual é o papel da caridade no Judaísmo?
A palavra hebraica que foi traduzida como caridade, na tradição cristã, é tsedaká. No entanto, etimologicamente, elas não contêm o mesmo significado. Tsedaká vem da raiz de tsedek (justiça). Assim sendo, tsedaká seria o ato de fazer justiça. Quando nós destinamos parte dos nossos proventos para suprir as necessidades de outros mais necessitados que nós, não estamos realizando um ato de bondade ou compaixão; estamos fazendo justiça e cumprindo com um dever moral.
É como se o privilégio que temos de receber uma porção maior do todo existisse porque estamos como fiéis depositários da porção de outros, e nos corresponde restituir essa parte que não é nossa aos seus verdadeiros donos. Por outro lado, a caridade, que vem do latim caritas, está ligada ao amor e a atos de bondade. São duas visões de mundo diferentes, para interpretar um texto sagrado que é comum a ambas, mas que cada qual cumpre o seu papel de fazer a vida de outros melhor. Gostaria, apenas, de agregar outro valor que é muito caro à tradição judaica, e chama-se tikun olam (reparação do mundo). Como sócios de Deus na criação, temos a tarefa de fazer esse mundo um lugar melhor, e isso só é possível quando somos empáticos ao sofrimento alheio e empreendemos esforços para reparar uma condição de desequilíbrio.
O Judaísmo possui uma rica ritualística e muitas celebrações características, como a cerimônia do Bar-mitzvá (cerimônia de inserção do jovem judeu na maturidade). Qual a importância do rito na fé judaica?
O rito, na nossa tradição, é importante para a transmissão e apropriação de uma identidade judaica e para a conservação do próprio Judaísmo. Os ciclos da vida (a circuncisão; bar/bat mitsvá; casamento e rituais fúnebres e de luto) são envolvidos tanto da parte ritualística quanto de significado para quem os vivencia. Além disso, temos ritos ligados aos eventos do ciclo anual (o shabat e as festas religiosas, as datas memoriais e datas cívicas ligadas a Israel). Cada uma dessas celebrações conecta todos os judeus ao redor do mundo, pois, independentemente da cultura do país no qual estão inseridos, em cada sinagoga se está celebrando a mesma festividade e preservando, de certa forma, a mesma matriz ritual, com pequenas variações de lugar para lugar e da forma de entender o judaísmo. De que maneira descreveria a missão do Judaísmo para seus fiéis e para o mundo?
Quando Deus chamou Abraham para tomar um caminho diferente ao politeísmo, foi-lhe anunciado que nele seriam benditas todas as famílias da Terra (Gen. 12:3). Penso que ali foi definida a missão do povo judeu: ser bênção aos demais. A questão que nos corresponde é descobrir como ser bênção. Penso que uma das maneiras que temos feito isto tem sido através das descobertas científicas que têm melhorado a qualidade de vida das pessoas em vários aspectos. Israel, como uma incubadora tecnológica, tem encontrado solução em termos diagnósticos (ex.: ressonância magnética) e cura para muitas doenças; tem desenvolvido aplicativos que tem auxiliado as pessoas desde situações cotidianas (Waze, Google, Facebook, Whatsapp) até grandes problemas da humanidade (como um modelo de gestão da água e energias renováveis). Essa é a nossa missão, como seres humanos. É uma missão que transcende o caráter religioso. Tanto que o Judaísmo nem se ocupa de ser uma religião proselitista, porque nossa missão não é converter as pessoas ao Judaísmo, mas sermos uma bênção para elas independentemente da fé que professem. Uma última mensagem para os leitores do Consciência Ecumênica?
A mensagem que eu tomo do monoteísmo judaico e compartilho com os leitores do Consciência Ecumênica encontra-se na nossa reza diária: “Ouve Israel, o Senhor teu Deus é único”. Poderíamos tomá-la em seu particularismo, e, dessa maneira, excluir a possibilidade de outras formas de perceber Deus. Mas prefiro lê-la em seu universalismo, entendendo que há uma forma única para cada pessoa se relacionar com a divindade. Esta forma, penso eu, abre caminho para a aceitação da diferença inter-religiosa, e até mesmo intra-religiosa, uma vez que mesmo dentro do Judaísmo encontramos diferentes formas de compreender as manifestações de Deus. ■
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